terça-feira, 18 de novembro de 2008

BIBLIA ABIBLIA: LIVROS DENTRO DE LIVROS


Link para texto integral de comunicação feita no I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial - Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004.

http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/marcussalgado.pdf

sábado, 15 de novembro de 2008


O EU É O OUTRO:
LITERATURA, IDENTIDADE E ALTERIDADE EM MONGÓLIA, DE BERNARDO CARVALHO





O objetivo do presente ensaio é investigar a experiência da alteridade como proposta pelo escritor carioca Bernardo Carvalho, procurando inserir esta experiência no interior de um frame mais amplo, no qual se vislumbram com nitidez as alterações na subjetividade verificadas na chamada pós-modernidade, aqui entendida no sentido que Frederic Jameson empresta ao termo – ou seja: o de um recorte ou abertura de natureza epistemológica nos domínios e estratégias do capitalismo tardio.



Em sendo um livro de viagem, tentamos inicialmente entender como Mongólia se situa nos paradigmas de narrativa de viagem como consolidados tanto pela modernidade como pela pós-modernidade.



Para tanto, num primeiro momento passamos em revista os artifícios estéticos agenciados pelo autor para a consecução de sua obra, particularmente no tocante à tramagem narrativa (arquitextura), à caracterização das personagens e à exploração cenográfica do Oriente.
Detectado este peso textual específico, dirigimo-nos ao substrato ideológico da narrativa, buscando entender em que medida e sob quais vetorizações Mongólia explora, como experiência constitutiva da obra, a questão da alteridade implícita nas narrativas de viagem.



Foi nestes focos que concentramos nossa análise, em tom ensaístico, dividida em duas partes (“O Eu” e “O Outro”), cada qual tratando, com a exigüidade imposta pelas condições de tempo e dimensões do presente trabalho, os temas principais suscitados pela leitura desta obra de Bernardo Carvalho.



Para a consecução da análise destes focos, procuramos uma metodologia intermédia, em que se equilibrassem as obras de lastro filosófico e as de lastro psicanalítico, como testemunham as referências bibliográficas. A fim de não reduzir a complexidade ideológica posta em jogo pela obra, optamos por uma abordagem integrada na instância de reflexão, determinada pelo saber transdisciplinar, enfatizando tanto as questões essenciais da subjetividade e do processo cognitivo como a dinâmica das forças ideológicas atuantes e determinantes no campo textual.



1. Primeira cogitação: o Eu


Como se apressa em informar a orelha do livro, Mongólia foi composto como resultado direto de uma viagem feita pelo autor, sob os auspícios de uma bolsa institucional, ao país que dá título à obra. Neste diapasão, se, por um lado, a narrativa ganha em lastro vivencial, por outro problematiza-se a inserção do livro numa categoria simples e definitiva, como a da “ficção” ou a do “relato de viagem” considerados em estado puro.



Mongólia ostenta uma estrutura narrativa peculiar, em que o autor usa e abusa do arsenal de recursos gráficos e estilísticos com o fito de organizar e dar ritmo à história e de traçar o perfil das personagens. O romance – que, em linhas gerais, pode ser resumido como a história de um diplomata enviado à Mongólia em busca de um fotógrafo brasileiro desaparecido durante uma expedição pelo país – é organizado pela figura clássica do narrador-editor, entidade literária consolidada no século XIX. Aqui, o narrador-editor é o superior hierárquico do enviado, que escreve a história dias depois de receber a notícia da morte de seu antigo subordinado, a partir de um diário de viagem e uma carta destinada a sua mulher.



O narrador-editor tem como objetivo organizar uma espécie de compilação do material que possui (um diário do falecido e dois diários do desaparecido) para montar uma reconstituição dos fatos (valor testemunhal do texto) que simultaneamente se articule enquanto narrativa (elaboração ficcional). A partir dos diários, a narrativa é por ele construída com uma mistura de discursos diretos e indiretos, além de citações fieis dos textos que toma em empréstimo (no caso, os diários). É a partir desta estratégia textual que se configura uma das tensões motrizes da obra: oscilando entre o esforço pela reconstituição de um fato ocorrido e a consciente reelaboração discursiva deste mesmo fato, Mongólia encena, no palco da metanarrativa, a tensão inevitável entre o texto enquanto resultado de um lastro vivencial e o texto enquanto discurso passível de manipulações póstumas. Apesar da utilização hiperbólica de recursos experimentais de tramagem narrativa (narrador-editor-personagem potencializado com simulações de três diários), certas características que conferem legibilidade e o status de ficção a um texto não se comprometem, de forma que podemos afirmar que em Mongólia estamos muito mais próximos de uma literatura pop do que dos experimentalismos ultra-cerebrais das vanguardas tardias. Isso fica claro no plano de composição das personagens. Se tivéssemos que aplicar uma imobilidade esquemática sobre elas, poderíamos facilmente reconhecer a presença de um sistema estável de protagonismo. E as personagens principais exercem seu protagonismo por oposição binária, quase esquemática, quer por presença, quer por ausência, e assim temos: a) o narrador-editor – que narra sempre a história de uma maneira onisciente, a partir do material deixado pelo seu enviado, o diplomata – que aparece na história ora como personagem, ora como narrador, quando são apresentados trechos do seu diário de viagem; b) e o desaparecido, também se apresentando como personagem e narrador, ao serem trazidas ao foco narrativo as transcrições dos seus dois diários.



O mesmo ocorre no tocante à personagem “Ocidental”. O que a estrutura – multifacetada e por vezes confusa – da narração procura desenhar em torno do Ocidental é uma personagem sem muita consistência psicológica, incoerente em seus modos de agir e pensar, em suas observações consideradas superficiais e equivocadas sobre tudo – assim julgadas a partir de declarações supostamente transcritas pelo narrador –, que acabam por ser alvo de uma reviravolta no final da história, com a explicação de que o desaparecido era seu irmão, filho de um pai que o renegou anos atrás, trazendo uma contradição proposital, dando à história uma cor diferente.
Como dito anteriormente, os três narradores (o fotógrafo desaparecido, o Ocidental e o encarregado de negócios em Pequim) não possuem nome, mas são claramente definidos seja pela fonte gráfica que marca os diários ou os comentários seja pelas suas ações como personagens. Além disso, as frases, quando citadas, serão apresentadas com os mesmos recursos gráficos para facilitar a identificação das vozes.



Todos os narradores se manifestam através da escrita: como o diário do fotógrafo cheio de impressões e descrições de apelo visual, como carta-diário do Ocidental e como um livro escrito pelo diplomata aposentado que “costura” estes textos por meio de supostas transcrições e paráfrases.



Assim, a despeito dos artifícios narrativos (três narradores, figura do narrador-editor, diferentes tipos gráficos para as diferentes vozes narrativas etc) que caracterizam o trabalho ficcional e o fato de sua folha de rosto trazer estampada a qualificação de romance, Mongólia não se ajusta confortavelmente à etiqueta da ficção, que se revela redutora tendo em vista o conhecimento em primeira mão que informa a obra no tocante ao seu cenário.



Igualmente desconfortável é o seu acondicionamento na categoria do “relato de viagem” – uma vez que, além dos artifícios narrativos que, hiperbolizados, desempenham papel fundamental na composição da obra, persiste e perpassa toda a narrativa um plano que se subtrai ao meramente estético, com a insistente vetorização para a experiência da alteridade (implícita no ato da viagem).




2. Segunda cogitação: o Outro



Temos, portanto, uma estrutura narrativa que pode ser sintetizada pelos três planos narrativos que se imbricam: a) o do narrador-editor (ex-embaixador brasileiro na China) que relata a investigaçãodiplomática sobre o desaparecimento de um fotógrafo brasileiro nointerior da Mongólia; b) as anotações de um diplomata escalado paraencontrar o fotógrafo; c) e o diário do próprio fotógrafo.



No terreno da subjetividade, porém, as regras do jogo são outras.



Como se pode esperar do título do romance, em Mongólia são recorrentes as descrições da paisagem asiática e doshábitos de seus habitantes. Tais descrições, entretanto, parecem esvaziadas tanto de uma inflexão negativa característica do olhar imperialista-eurocêntrico quanto da benevolência decorrente do culto leviano do exótico em matéria de literatura ou viagem – falsa tensão binária entre pontos de vista que, embora aparentemente antagônicos, constituíram a face e a contra-face da experiência da alteridade como verificada no interior do discurso constitutivo e narcisista das produções culturais eurocêntricas cooptadas, voluntária ou involuntariamente, como aparelho ideológico do colonialismo e do imperialismo. Nas palavras de Aijaz Ahmad (2008: 181), “Orientalism appears to be an ideological corollory of colonialism”, uma vez que seus fundamentos encontram lastro na distinção ontológica e epistemológica entre “Ocidente” e “Oriente” – o último sempre percebido como hostil e perigoso, a ele perspegadas as idéias de “emptiness, loss and disaster that seem thereafter to reward Oriental challenges to the West” (Said, 1979: 57).



Mongólia, entretanto, não se inscreve no campo de forças ideológicas característico do discurso imperialista-colonialista denominado por Edward Said como orientalism. Em Mongólia o acesso ao Outro – virtualmente impossível ou considerado ab ovo como uma idealização inatingível – se faz antes pela detecção de identidades, e não pelo realce das diferenças. Assim, o que deveria impressionar e ganhar proporções grandíloquas, é amortecido exatamente pelo que contém de inóspito e de artificial ou mesmo de banal, de forma que em Mongólia vemos traçado, em linhas gerais, este viajante característico da pós-modernidade, que se desloca por paisagens cada vez mais homogeneizadas pela arquitetura à serviço do capital, viajante embotado pela facilidade do deslocamento e pelo culto da velocidade, emocionalmente danificado pelo convívio prolongado com simulacros, distante demais de si mesmo para poder penetrar nos arcanos da subjetividade alheia ou mesmo de uma paisagem.



Afinal, como mostra a arquitetura opressiva dos edifícios espelhados onde o capital volátil se abriga para seus golpes instantâneos sobre a economia cada vez mais planificada globalmente e dos conjuntos habitacionais de qualquer grande cidade de qualquer país (Mongólia ou Brasil), todas as paisagens foram devassadas, todas as paisagens são desoladas, todas as cidades são desertos: é a arquitetura dos não-lugares e dos espaços de confinamento prescritos pelo capital para controle social das populações, a arquitetura que aliena o corpo individual do corpo social, apagando qualquer ponto intermédio que possa se situar entre a identidade interior e a manifestação exterior desta identidade, gerando “the consequent experience of the self as an isolated, alienated entity incapable of real, organic connection with any collectivity” (Ahmad, 2008: 107). Daí o sentimento de um estranhamento não-extático diante de lugares dos quais os estereótipos fazem com que esperemos sempre muito mais do que efetivamente obtemos quando de um contato real; daí o sentimento de déficit que perpassa a narrativa e obriga à desconstrução destes mesmos clichês geográficos.



Os narradores experimentam o dépaysement não pelo fato de estarem na Mongólia, possível antípoda de uma cultura tropical; o sentir-se estrangeiro, e assim deslocado, é em relação ao mundo, em relação à vida. Somente um dénouement insólito, ainda que inconsistente, como o que encerra o livro, para fazer irromper uma força capaz de transformar o entendimento de tudo que havia sido vivido e mitigar o sentimento de incompreensão.



Destarte, o que num primeiro momentopoderia parecer a narrativa de um "choque de culturas" (experiência que informava a subjetividade burguesa moderna e a literatura de viagem dela decorrente), umareflexão sobre o deslocamento e o desconforto causado pelo Outro,revela-se, a bem da verdade, o relato de um mal estar que é tão global como a economia e os modos de produção que atuam entre suas causas. Como bem aponta Aijaz Ahmad, “what gives the world is unity, then, is not a humanist ideology but the ferocious struggle between capital and labour which is now strictly and fundamentally global in character” (Ahmad, 2008: 104).



Uma descrição de Pequim, feita pelo diplomata numa escala a caminhoda Mongólia, poderia muito bem ser um retrato de São Paulo ou Brasília, ou qualquer outra metrópole do G-13, onde o poder econômico se manifesta da habitual maneira "opressiva e irreal",como ele declara em outro trecho. Esta sensação é amplificada pelas imagens que nos chegam, de cambulhada com as competições olímpicas, retratando a China dos dias de hoje, com direito tanto à arquitetura oficial e funcionalista herdada dos anos de comunismo como edifícios espelhados e as famosas sweating shops cujas condições de trabalho nos fazem lembrar das descrições de Marx e Engels onde se registra o martírio das classes proletárias na Europa em processo de industrialização na primeira metade do século XIX. Este fato também é percebido por um cultural theorist como Aijaz Ahmad, para quem a enorme heterogeneidade cultural das formações sociais dos países do chamado terceiro mundo foi submersa por uma identidade singular, cuja lógica em atuação é a do capitalismo tardio.



Nem mesmo a presença das populações nomádicas – cuja indeterminação de seus deslocamentos poderia satisfazer tanto ao afã pelo exotismo que remete à subjetividade burguesa moderna como ao que Ahmad (2008: 120) chama de “the postmodernist cult of utter non-determinacy” – parece sinalizar para um ponto de fuga. Prensados no século XX entre os imperialismos chinês e russo, as tribos nômades surgem não como símbolo de uma liberdade possível mas como uma espécie em extinção cuja persistência atenta seriamente contra a lógica e as estratégias do capitalismo tardio e intensifica mais ainda este mal-estar global.



Neste sentido, pouco importa que o cenário seja a China, a Mongólia ou o Brasil: estaremos sempre diante de uma imagem-miragem, de um cenário de pura subjetividade, para além do meramente geográfico.



Talvez o paroxismo desse processo seja sintetizado na iconografia da capa. Dando continuidade no plano icônico ao jogo de facetas, duplicações e reduplicações de identidade que marca a estrutura narrativa, as fotos que ilustram a capa e a contra-capa do livro poderiam sugerir, por si, serem do fotógrafo desaparecido; a leitura dos créditos nos faz lembrar, entretanto, que, para efeitos de registro civil, são de Bernardo Carvalho, o autor. Uma dessas fotos, contradizendo qualquer representação icônica da alteridade na chave do óbvio ou mesmo do folclórico (como nos fazem esperar os estereótipos, a macumba para turista ver, como entre nós já advertia Oswald), retrata um grupo de mongóis jogando bilhar em meio a um espaço desértico, numa cena que consegue a proeza ontológica de ser ao mesmo tempo estranha e familiar, de sintetizar a complexidade das múltiplas formações ideológicas jacentes na experiência da alteridade: o eu e o outro.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AHMAD, Aijaz. In Theory: Classes, Nations and Literatures. London: Verso, 2008.
CARVALHO, Bernardo. Mongólia. 2ª reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
SAID, Edward. Orientalism. New York: Vintage, 1979.