terça-feira, 18 de novembro de 2008

BIBLIA ABIBLIA: LIVROS DENTRO DE LIVROS


Link para texto integral de comunicação feita no I Seminário Brasileiro sobre Livro e História Editorial - Fundação Casa de Rui Barbosa, 2004.

http://www.livroehistoriaeditorial.pro.br/pdf/marcussalgado.pdf

sábado, 15 de novembro de 2008


O EU É O OUTRO:
LITERATURA, IDENTIDADE E ALTERIDADE EM MONGÓLIA, DE BERNARDO CARVALHO





O objetivo do presente ensaio é investigar a experiência da alteridade como proposta pelo escritor carioca Bernardo Carvalho, procurando inserir esta experiência no interior de um frame mais amplo, no qual se vislumbram com nitidez as alterações na subjetividade verificadas na chamada pós-modernidade, aqui entendida no sentido que Frederic Jameson empresta ao termo – ou seja: o de um recorte ou abertura de natureza epistemológica nos domínios e estratégias do capitalismo tardio.



Em sendo um livro de viagem, tentamos inicialmente entender como Mongólia se situa nos paradigmas de narrativa de viagem como consolidados tanto pela modernidade como pela pós-modernidade.



Para tanto, num primeiro momento passamos em revista os artifícios estéticos agenciados pelo autor para a consecução de sua obra, particularmente no tocante à tramagem narrativa (arquitextura), à caracterização das personagens e à exploração cenográfica do Oriente.
Detectado este peso textual específico, dirigimo-nos ao substrato ideológico da narrativa, buscando entender em que medida e sob quais vetorizações Mongólia explora, como experiência constitutiva da obra, a questão da alteridade implícita nas narrativas de viagem.



Foi nestes focos que concentramos nossa análise, em tom ensaístico, dividida em duas partes (“O Eu” e “O Outro”), cada qual tratando, com a exigüidade imposta pelas condições de tempo e dimensões do presente trabalho, os temas principais suscitados pela leitura desta obra de Bernardo Carvalho.



Para a consecução da análise destes focos, procuramos uma metodologia intermédia, em que se equilibrassem as obras de lastro filosófico e as de lastro psicanalítico, como testemunham as referências bibliográficas. A fim de não reduzir a complexidade ideológica posta em jogo pela obra, optamos por uma abordagem integrada na instância de reflexão, determinada pelo saber transdisciplinar, enfatizando tanto as questões essenciais da subjetividade e do processo cognitivo como a dinâmica das forças ideológicas atuantes e determinantes no campo textual.



1. Primeira cogitação: o Eu


Como se apressa em informar a orelha do livro, Mongólia foi composto como resultado direto de uma viagem feita pelo autor, sob os auspícios de uma bolsa institucional, ao país que dá título à obra. Neste diapasão, se, por um lado, a narrativa ganha em lastro vivencial, por outro problematiza-se a inserção do livro numa categoria simples e definitiva, como a da “ficção” ou a do “relato de viagem” considerados em estado puro.



Mongólia ostenta uma estrutura narrativa peculiar, em que o autor usa e abusa do arsenal de recursos gráficos e estilísticos com o fito de organizar e dar ritmo à história e de traçar o perfil das personagens. O romance – que, em linhas gerais, pode ser resumido como a história de um diplomata enviado à Mongólia em busca de um fotógrafo brasileiro desaparecido durante uma expedição pelo país – é organizado pela figura clássica do narrador-editor, entidade literária consolidada no século XIX. Aqui, o narrador-editor é o superior hierárquico do enviado, que escreve a história dias depois de receber a notícia da morte de seu antigo subordinado, a partir de um diário de viagem e uma carta destinada a sua mulher.



O narrador-editor tem como objetivo organizar uma espécie de compilação do material que possui (um diário do falecido e dois diários do desaparecido) para montar uma reconstituição dos fatos (valor testemunhal do texto) que simultaneamente se articule enquanto narrativa (elaboração ficcional). A partir dos diários, a narrativa é por ele construída com uma mistura de discursos diretos e indiretos, além de citações fieis dos textos que toma em empréstimo (no caso, os diários). É a partir desta estratégia textual que se configura uma das tensões motrizes da obra: oscilando entre o esforço pela reconstituição de um fato ocorrido e a consciente reelaboração discursiva deste mesmo fato, Mongólia encena, no palco da metanarrativa, a tensão inevitável entre o texto enquanto resultado de um lastro vivencial e o texto enquanto discurso passível de manipulações póstumas. Apesar da utilização hiperbólica de recursos experimentais de tramagem narrativa (narrador-editor-personagem potencializado com simulações de três diários), certas características que conferem legibilidade e o status de ficção a um texto não se comprometem, de forma que podemos afirmar que em Mongólia estamos muito mais próximos de uma literatura pop do que dos experimentalismos ultra-cerebrais das vanguardas tardias. Isso fica claro no plano de composição das personagens. Se tivéssemos que aplicar uma imobilidade esquemática sobre elas, poderíamos facilmente reconhecer a presença de um sistema estável de protagonismo. E as personagens principais exercem seu protagonismo por oposição binária, quase esquemática, quer por presença, quer por ausência, e assim temos: a) o narrador-editor – que narra sempre a história de uma maneira onisciente, a partir do material deixado pelo seu enviado, o diplomata – que aparece na história ora como personagem, ora como narrador, quando são apresentados trechos do seu diário de viagem; b) e o desaparecido, também se apresentando como personagem e narrador, ao serem trazidas ao foco narrativo as transcrições dos seus dois diários.



O mesmo ocorre no tocante à personagem “Ocidental”. O que a estrutura – multifacetada e por vezes confusa – da narração procura desenhar em torno do Ocidental é uma personagem sem muita consistência psicológica, incoerente em seus modos de agir e pensar, em suas observações consideradas superficiais e equivocadas sobre tudo – assim julgadas a partir de declarações supostamente transcritas pelo narrador –, que acabam por ser alvo de uma reviravolta no final da história, com a explicação de que o desaparecido era seu irmão, filho de um pai que o renegou anos atrás, trazendo uma contradição proposital, dando à história uma cor diferente.
Como dito anteriormente, os três narradores (o fotógrafo desaparecido, o Ocidental e o encarregado de negócios em Pequim) não possuem nome, mas são claramente definidos seja pela fonte gráfica que marca os diários ou os comentários seja pelas suas ações como personagens. Além disso, as frases, quando citadas, serão apresentadas com os mesmos recursos gráficos para facilitar a identificação das vozes.



Todos os narradores se manifestam através da escrita: como o diário do fotógrafo cheio de impressões e descrições de apelo visual, como carta-diário do Ocidental e como um livro escrito pelo diplomata aposentado que “costura” estes textos por meio de supostas transcrições e paráfrases.



Assim, a despeito dos artifícios narrativos (três narradores, figura do narrador-editor, diferentes tipos gráficos para as diferentes vozes narrativas etc) que caracterizam o trabalho ficcional e o fato de sua folha de rosto trazer estampada a qualificação de romance, Mongólia não se ajusta confortavelmente à etiqueta da ficção, que se revela redutora tendo em vista o conhecimento em primeira mão que informa a obra no tocante ao seu cenário.



Igualmente desconfortável é o seu acondicionamento na categoria do “relato de viagem” – uma vez que, além dos artifícios narrativos que, hiperbolizados, desempenham papel fundamental na composição da obra, persiste e perpassa toda a narrativa um plano que se subtrai ao meramente estético, com a insistente vetorização para a experiência da alteridade (implícita no ato da viagem).




2. Segunda cogitação: o Outro



Temos, portanto, uma estrutura narrativa que pode ser sintetizada pelos três planos narrativos que se imbricam: a) o do narrador-editor (ex-embaixador brasileiro na China) que relata a investigaçãodiplomática sobre o desaparecimento de um fotógrafo brasileiro nointerior da Mongólia; b) as anotações de um diplomata escalado paraencontrar o fotógrafo; c) e o diário do próprio fotógrafo.



No terreno da subjetividade, porém, as regras do jogo são outras.



Como se pode esperar do título do romance, em Mongólia são recorrentes as descrições da paisagem asiática e doshábitos de seus habitantes. Tais descrições, entretanto, parecem esvaziadas tanto de uma inflexão negativa característica do olhar imperialista-eurocêntrico quanto da benevolência decorrente do culto leviano do exótico em matéria de literatura ou viagem – falsa tensão binária entre pontos de vista que, embora aparentemente antagônicos, constituíram a face e a contra-face da experiência da alteridade como verificada no interior do discurso constitutivo e narcisista das produções culturais eurocêntricas cooptadas, voluntária ou involuntariamente, como aparelho ideológico do colonialismo e do imperialismo. Nas palavras de Aijaz Ahmad (2008: 181), “Orientalism appears to be an ideological corollory of colonialism”, uma vez que seus fundamentos encontram lastro na distinção ontológica e epistemológica entre “Ocidente” e “Oriente” – o último sempre percebido como hostil e perigoso, a ele perspegadas as idéias de “emptiness, loss and disaster that seem thereafter to reward Oriental challenges to the West” (Said, 1979: 57).



Mongólia, entretanto, não se inscreve no campo de forças ideológicas característico do discurso imperialista-colonialista denominado por Edward Said como orientalism. Em Mongólia o acesso ao Outro – virtualmente impossível ou considerado ab ovo como uma idealização inatingível – se faz antes pela detecção de identidades, e não pelo realce das diferenças. Assim, o que deveria impressionar e ganhar proporções grandíloquas, é amortecido exatamente pelo que contém de inóspito e de artificial ou mesmo de banal, de forma que em Mongólia vemos traçado, em linhas gerais, este viajante característico da pós-modernidade, que se desloca por paisagens cada vez mais homogeneizadas pela arquitetura à serviço do capital, viajante embotado pela facilidade do deslocamento e pelo culto da velocidade, emocionalmente danificado pelo convívio prolongado com simulacros, distante demais de si mesmo para poder penetrar nos arcanos da subjetividade alheia ou mesmo de uma paisagem.



Afinal, como mostra a arquitetura opressiva dos edifícios espelhados onde o capital volátil se abriga para seus golpes instantâneos sobre a economia cada vez mais planificada globalmente e dos conjuntos habitacionais de qualquer grande cidade de qualquer país (Mongólia ou Brasil), todas as paisagens foram devassadas, todas as paisagens são desoladas, todas as cidades são desertos: é a arquitetura dos não-lugares e dos espaços de confinamento prescritos pelo capital para controle social das populações, a arquitetura que aliena o corpo individual do corpo social, apagando qualquer ponto intermédio que possa se situar entre a identidade interior e a manifestação exterior desta identidade, gerando “the consequent experience of the self as an isolated, alienated entity incapable of real, organic connection with any collectivity” (Ahmad, 2008: 107). Daí o sentimento de um estranhamento não-extático diante de lugares dos quais os estereótipos fazem com que esperemos sempre muito mais do que efetivamente obtemos quando de um contato real; daí o sentimento de déficit que perpassa a narrativa e obriga à desconstrução destes mesmos clichês geográficos.



Os narradores experimentam o dépaysement não pelo fato de estarem na Mongólia, possível antípoda de uma cultura tropical; o sentir-se estrangeiro, e assim deslocado, é em relação ao mundo, em relação à vida. Somente um dénouement insólito, ainda que inconsistente, como o que encerra o livro, para fazer irromper uma força capaz de transformar o entendimento de tudo que havia sido vivido e mitigar o sentimento de incompreensão.



Destarte, o que num primeiro momentopoderia parecer a narrativa de um "choque de culturas" (experiência que informava a subjetividade burguesa moderna e a literatura de viagem dela decorrente), umareflexão sobre o deslocamento e o desconforto causado pelo Outro,revela-se, a bem da verdade, o relato de um mal estar que é tão global como a economia e os modos de produção que atuam entre suas causas. Como bem aponta Aijaz Ahmad, “what gives the world is unity, then, is not a humanist ideology but the ferocious struggle between capital and labour which is now strictly and fundamentally global in character” (Ahmad, 2008: 104).



Uma descrição de Pequim, feita pelo diplomata numa escala a caminhoda Mongólia, poderia muito bem ser um retrato de São Paulo ou Brasília, ou qualquer outra metrópole do G-13, onde o poder econômico se manifesta da habitual maneira "opressiva e irreal",como ele declara em outro trecho. Esta sensação é amplificada pelas imagens que nos chegam, de cambulhada com as competições olímpicas, retratando a China dos dias de hoje, com direito tanto à arquitetura oficial e funcionalista herdada dos anos de comunismo como edifícios espelhados e as famosas sweating shops cujas condições de trabalho nos fazem lembrar das descrições de Marx e Engels onde se registra o martírio das classes proletárias na Europa em processo de industrialização na primeira metade do século XIX. Este fato também é percebido por um cultural theorist como Aijaz Ahmad, para quem a enorme heterogeneidade cultural das formações sociais dos países do chamado terceiro mundo foi submersa por uma identidade singular, cuja lógica em atuação é a do capitalismo tardio.



Nem mesmo a presença das populações nomádicas – cuja indeterminação de seus deslocamentos poderia satisfazer tanto ao afã pelo exotismo que remete à subjetividade burguesa moderna como ao que Ahmad (2008: 120) chama de “the postmodernist cult of utter non-determinacy” – parece sinalizar para um ponto de fuga. Prensados no século XX entre os imperialismos chinês e russo, as tribos nômades surgem não como símbolo de uma liberdade possível mas como uma espécie em extinção cuja persistência atenta seriamente contra a lógica e as estratégias do capitalismo tardio e intensifica mais ainda este mal-estar global.



Neste sentido, pouco importa que o cenário seja a China, a Mongólia ou o Brasil: estaremos sempre diante de uma imagem-miragem, de um cenário de pura subjetividade, para além do meramente geográfico.



Talvez o paroxismo desse processo seja sintetizado na iconografia da capa. Dando continuidade no plano icônico ao jogo de facetas, duplicações e reduplicações de identidade que marca a estrutura narrativa, as fotos que ilustram a capa e a contra-capa do livro poderiam sugerir, por si, serem do fotógrafo desaparecido; a leitura dos créditos nos faz lembrar, entretanto, que, para efeitos de registro civil, são de Bernardo Carvalho, o autor. Uma dessas fotos, contradizendo qualquer representação icônica da alteridade na chave do óbvio ou mesmo do folclórico (como nos fazem esperar os estereótipos, a macumba para turista ver, como entre nós já advertia Oswald), retrata um grupo de mongóis jogando bilhar em meio a um espaço desértico, numa cena que consegue a proeza ontológica de ser ao mesmo tempo estranha e familiar, de sintetizar a complexidade das múltiplas formações ideológicas jacentes na experiência da alteridade: o eu e o outro.





REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AHMAD, Aijaz. In Theory: Classes, Nations and Literatures. London: Verso, 2008.
CARVALHO, Bernardo. Mongólia. 2ª reimpressão. São Paulo: Cia. das Letras, 2006.
SAID, Edward. Orientalism. New York: Vintage, 1979.

quinta-feira, 28 de agosto de 2008

O NARRADOR PÓS-MODERNO
Silviano Santiago



Os contos de Edilberto Coutinho servem tanto para colocar de maneira exemplar como para discutir exaustivamente uma das questões básicas sobre o narrador na pós-modernidade. Quem narra uma história é quem a experimenta, ou quem a vê? Ou seja: é aquele que narra ações a partir da experiência que tem delas, ou é aquele que narra ações a partir de um conhecimento que passou a ter delas por tê-las observado em outro?

No primeiro caso, o narrador transmite uma vivência; no segundo caso, ele passa uma informação sobre outra pessoa. Pode-se narrar uma ação de dentro dela, ou de fora dela. É insuficiente dizer que se trata de uma opção. Em termos concretos: narro a experiência de jogador de futebol porque sou jogador de futebol; narro as experiências de um jogador de futebol porque acostumei-me a observá-lo. No primeiro caso, a narrativa expressa a experiência de uma ação; no outro, é a experiência proporcionada por um olhar lançado. Num caso, a ação é a experiência que se tem dela, e é isso que empresta autenticidade à matéria que é narrada e ao relato; no outro caso, é discutível falar de autenticidade da experiência e do relato porque o que se transmite é uma informação obtida a partir da observação de um terceiro. O que está em questão é a noção de autenticidade. Só é autêntico o que eu narro a partir do que experimento, ou pode ser autêntico o que eu narro e conheço por ter observado? Será sempre o saber humano decorrência da experiência concreta de uma ação, ou o saber poderá existir de uma forma exterior a essa experiência concreta de uma ação? Um outro exemplo palpável: digo que é autêntica a narrativa de um incêndio feita por uma das vítimas, pergunto se não é autêntica a narrativa do mesmo incêndio feita por alguém que esteve ali a observá-lo.

Tento uma primeira hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é aquele que quer extrair a si da ação narrada, em atitude semelhante à de um repórter ou de um espectador. Ele narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante.

Trabalhando com o narrador que olha para se informar (e não com o que narra mergulhado na própria existência), a ficção de Edilberto Coutinho dá um passo a mais no processo de rechaço e distanciamento do narrador clássico, segundo a caracterização modelar que dele fez Walter Benjamin, ao tecer considerações sobre a obra de Nicolai Leskov. É o movimento de rechaço e de distanciamento que torna o narrador pós-moderno.

Para Benjamin os seres humanos estão se privando hoje da "faculdade de intercambiar experiência", isso porque "as ações da experiência estão em baixa, e tudo indica que continuarão caindo até que seu valor desapareça de todo". À medida que a sociedade se moderniza, torna-se mais e mais difícil o diálogo enquanto troca de opiniões sobre ações que foram vivenciadas. As pessoas já não conseguem hoje narrar o que experimentaram na própria pele.

Dessa forma, Benjamin pode caracterizar três estágios evolutivos por que passa a história do narrador. Primeiro estágio: o narrador clássico, cuja função é dar ao seu ouvinte a oportunidade de um intercâmbio de experiência (único valorizado no ensaio); segundo: o narrador do romance, cuja função passou a ser a de não mais poder falar de maneira exemplar ao seu leitor; terceiro: o narrador que é jornalista, ou seja, aquele que só transmite pelo narrar a informação, visto que escreve não para narrar a ação da própria experiência, mas o que aconteceu com x ou y em tal lugar e a tal hora. Benjamin desvaloriza (o pós-moderno valoriza) o último narrador. Para Benjamin, a narrativa não deve estar "interessada em transmitir o 'puro em si' da coisa narrada como uma informação ou um relatório". A narrativa é narrativa "porque ela mergulha a coisa na vida do narrador para depois retirá-la dele". No meio, fica o narrador do romance, que se quer impessoal e objetivo diante da coisa narrada, mas que, no fundo, se confessa como Flaubert o fez de maneira paradigmática: "Madame Bovary, c'est moi".

Retomemos: a coisa narrada é mergulhada na vida do narrador e dali retirada; a coisa narrada é vista com objetividade pelo narrador, embora este confesse tê-la extraído da sua vivência; a coisa narrada existe como puro em si, ela é informação, exterior à vida do narrador.
No raciocínio de Benjamin, o principal eixo em torno do qual gira o "embelezamento" (e não a decadência) da narrativa clássica hoje é a perda gradual e constante da sua "dimensão utilitária". O narrador clássico tem "senso prático", pretende ensinar algo. Quando o camponês sedentário ou o marinheiro comerciante narram, respectivamente, tradições da comunidade ou viagens ao estrangeiro, eles estão sendo úteis ao ouvinte. Diz Benjamin: "Essa utilidade [da narrativa] pode consistir seja num ensinamento moral, seja numa sugestão prática, seja num provérbio ou numa norma de vida - de qualquer maneira, o narrador é um homem que sabe dar conselhos". E arremata: "O conselho tecido na substância viva da experiência tem um nome: sabedoria". A informação não transmite essa sabedoria porque a ação narrada por ela não foi tecida na substância viva da existência do narrador.

Tento uma segunda hipótese de trabalho: o narrador pós-moderno é o que transmite uma "sabedoria" que é decorrência da observação de uma vivência alheia a ele, visto que a ação que narra não foi tecida na substância viva da sua existência. Nesse sentido, ele é o puro ficcionista, pois tem de dar "autenticidade" a uma ação que, por não ter o respaldo da vivência, estaria desprovida de autenticidade. Esta advém da verossimilhança que é produto da lógica interna do relato. O narrador pós-moderno sabe que o "real" e o "autêntico" são construções de linguagem.

(A perda do caráter utilitário e a subtração do bom conselho e da sabedoria, características do estágio presente da narrativa, não são por Benjamin como sinais de um processo de decadência porque passa a arte de narrar hoje, como sugerimos atrás, o que o retira de imediato da categoria dos historiadores anacrônicos ou catastróficos. Na escrita de Benjamin, a perda e as subtrações acima referidas são apontadas para que se saliente, por constraste, a "beleza" da narrativa clássica - a sua perenidade. O jogo básico no raciocínio de Benjamin é a valorização do pleno a partir da constatação do que nele se esvai. E o incompleto - antes de ser inferior - é apenas menos belo e mais problemático. As transformações por que passa o narrador são concomitantes com "toda uma evolução secular das forças produtivas". Não se trata, pois, de olhar para trás para repetir o ontem hoje (seríamos talvez historiadores mais felizes, porque nos restringiríamos ao reino do belo). Trata-se antes de julgar belo o que foi e ainda o é - no caso, o narrador clássico -, e de dar conta do que apareceu como problemático ontem - o narrador do romance -, e que aparece ainda mais problemático hoje - o narrador pós-moderno. Aviso aos benjaminianos: estamos utilizando o conceito de narrador num sentido mais amplo do que o proposto pelo filosófico alemão. Reserva ele o conceito apenas para o que estamos chamando de narrador clássico).

Apoiando-nos na leitura de alguns contos de Edilberto, tentaremos comprovar as hipóteses de trabalho e apreender o significado e a extensão dos problemas propostos. Tudo isso com o fim de apresentar subsídios para uma discussão e futura tipologia do narrador pós-moderno.

Dissemos antes: alguns contos, e sustentamos o corte. Caso contrário, haveria a possibilidade de embaralhar o nosso desígnio, pois a variedade dos narradores que a ficção de EC apresenta é mais ampla do que a analisada. Citemos como exemplo o conto "Mangas-de-jasmim" (justamente apreciado por Jorge Amado): Ele foge ao narrar pós-moderno e se aproxima da narrativa que reescreve as tradições de uma comunidade, podendo ser classificado como narrativa de "reminiscência", como quer Benjamin, e que foi típica do modernismo (Mário de Andrade, José Lins, Guimarães Rosa, etc.). A reminiscência é que "tece a rede que em última instância todas as histórias constituem entre si". A nossa intenção hoje não é a de dar uma pincelada a mais no "embelezamento" da narrativa clássica, trabalho já feito com brilho por leitores brasileiros de Benjamin, como Davi Arrigucci Jr. (1) e Ecléa Bosi (2). A nossa idéia é a de contemplar como Benjamin o "Angelum Novus", de Klee, tentando compreender a razão por que as asas do anjo da história não se fecham quando tomadas pela tempestade que é o progresso. Ou seja: tentar compreender o que é problemático na atualidade - história do vôo humano na tempestade do progresso.

No conto "Sangue na praça", um jornalista brasileiro em visita à Espanha (e que é o narrador do conto) e sua jovem companheira encontram-se numa plaza de toros com o romancista americano Ernest Hemingway. O jornalista brasileiro é também repórter e encontra-se com o romancista americano que também fora repórter. Ótima ocasião para se tematizar o narrador clássico e dramatizar um "intercâmbio de experiência". Mas esse não é o intento do narrador (e do relato). Interessa-lhe dramatizar outras questões. Apresenta a oscilação entre duas profissões (a de repórter e a de romancista) e entre duas formas diferentes de produção narrativa (a jornalística e a literária). Esse dilema é certamente nosso contemporâneo e, portanto, não é gratuito. Como também não o é, ainda no conto, a reaproximação final e definitiva entre repórter e romancista, entre produção jornalística e produção literária.

Quem tentou embaralhar as duas coisas para Hemingway, sem êxito, foi a romancista Gertrude Stein (no conto apresentada como "aquela mulher de Paris"). Informa Hemingway ao jornalista brasileiro que o entrevista: "Eu estava tentando ser um escritor e ela [Gertrudes] me disse praticamente para desistir. Afirmou que eu era e que seria apenas um repórter". O golpe, pelo visto, foi duro na época para o aspirante a romancista, mas de curta duração, porque logo ele descobre que não havia nada de mau em ser repórter-romancista, ou vice-versa. Conclui: "E foi escrevendo para jornais que realmente aprendi a ser escritor".

Interessa pouco agora vasculhar escritos e biografias dos envolvidos para indagar sobre a veracidade da situação e do diálogo. Estes se sustentam ao propor temas que transcendem as personalidades envolvidas. Contentemo-nos, pois, em apanhá-los, situação e diálogo, na área do conto e descobrir que, não sem interesse, o conto se escreve paradoxalmente como uma...reportagem. Hemingway chegou à Espanha e, como sempre, desancou a imprensa, negando-se violentamente a dar entrevistas ao denegrir pouco eticamente os colegas. O narrador não se intimida. Vai à luta com a sua companheira, de nome Clara. Parte da história do conto é a insistência do repórter junto a Hemingway para obter uma entrevista. A insistência só é quebrada por um outro incidente, tão jornalístico quanto o anterior: o toureiro foi atingido pelo touro e é retirado ferido da arena.

Reportagem ou conto? Os dois certamente. Leiam, ainda, outros textos de EC como "Eleitorado ou" e "Mulher na jogada". No universo de Hemingway (conforme o conto) e no de Edilberto (de acordo com a característica da produção) se impõem um desprestígio das chamadas formas romanescas (as que, no conto, seriam defendidas por Gertrudes Stein) e um favorecimento das técnicas jornalísticas do narrar; ou melhor, impõe-se a atitude jornalística do narrador diante do personagem, do assunto e do texto. Está ali o narrador para informar o seu leitor do que acontece na plaza. Essa reviravolta estática não é sem conseqüência para o tópico que queremos discutir, visto que a figura do narrador passa ser basicamente a de quem se interessa pelo outro (e não por si) e se afirma pelo olhar que lança ao seu redor, acompanhando seres, fatos e incidentes (e não por um olhar introspectivo que cata experiências vividas no passado).
De maneira ainda simplificada, pode-se dizer que o narrador olha o outro para levá-lo a falar (entrevista), já que ali não está para falar das ações de sua experiência. Mas nenhuma escrita é inocente. Como correlato à afirmação anterior, acrescentemos que, ao dar fala ao outro, acaba também por dar fala a si, só que de maneira indireta. A fala própria do narrador que se quer repórter é a fala por interposta pessoa. A oscilação entre repórter e romancista, vivenciada sofridamente pelo personagem (Hemingway), é a mesma experimentada, só que em silêncio, pelo narrador (brasileiro). Por que este não narra as coisas como sendo suas, ou seja, a partir da sua própria experiência?

Antes de responder a essa pergunta, entremos num outro conto espanhol de EC, "Azeitona e vinho". Em rápidas linhas, eis o que acontece: um velho e experiente homem do povoado (que é o narrador do conto), sentado numa bodega, toma vinho e olha um jovem toureiro, Pablo (conhecido como El Mudo), cercado de amigos, admiradores e turistas ricos. Olhando e observando como um repórter diante do objeto da sua matéria, o velho se embriaga mais e mais tecendo conjeturas sobre a vida do outro, ou seja, o que acontece, aconteceu e deveria acontecer com o jovem e inexperiente toureiro, depositando nele as esperanças de todo o povoado.
Os personagens e temas são semelhantes aos do conto anterior, e o que importa para nós: a própria atitude do narrador é semelhante, embora ele, no segundo conto, já não tenha mais como profissão o jornalismo, é alguém do povoado. O narrador tinha tudo para ser o narrador clássico: como velho e experiente, podia debruçar-se sobre as ações da sua vivência e, em reminiscência, misturar a sua história com outras que convivem com ela na tradição da comunidade. No entanto, nada disso faz. Olha o mais novo e se embriaga com vinho e a vida do outro.

Permanece, pois, como válida e como vértebra da ficção de EC uma forma precisa de narrar, ainda que desta vez a forma jornalística não seja coincidente com a profissão do narrador (onde a autenticidade como respaldo para a verossimilhança?). Trata-se de um estilo, como se diz, ou de uma visão do mundo, como preferimos, uma característica do conto de EC que transcende até mesmo as regras mínimas de caracterização do narrador.

A continuidade no processo de narrar estabelecida entre contos diferentes afirma que o essencial da ficção de EC não é a discussão sobre o narrador enquanto repórter (embora o possa ser neste ou naquele conto), mas o essencial é algo de mais difícil apreensão, ou seja, a própria arte do narrar hoje. Por outro lado, paralela a esta constatação, surge a pergunta já anunciada anteriormente e estrategicamente abandonada: por que o narrador não narra sua experiência de vida? A história de "Azeitona e vinho" narra ações enquanto vivenciadas pelo jovem toureiro; ela é basicamente a experiência do olhar lançado ao outro.

Atando a constatação à pergunta, vemos que o que está em jogo nos contos de EC não é tanto a trama global de cada conto (sempre é de fácil compreensão), nem a caracterização e desenvolvimento dos personagens (sempre beiram o protótipo), mas algo de mais profundo que é o denso mistério que cerca a figura do narrador pós-moderno. O narrador se subtrai da ação narrada (há graus de intensidade na subtração, como veremos ao ler "A lugar algum") e, ao fazê-lo, cria um espaço para a ficção dramatizar a experiência de alguém que é observado e muitas vezes desprovido de palavra. Subtraindo-se à ação narrada pelo conto, o narrador identifica-se com um segundo observador - o leitor. Ambos se encontram privados da exposição da própria experiência na ficção e são observadores atentos da experiência alheia. Na pobreza da experiênciai de ambos se revela a importância do personagem na ficção pós-moderna; narrador e leitor se definem como espectadores de uma ação alheia que os empolga, emociona, seduz, etc.
A maioria dos contos de Edilberto se recobrem e se enriquecem pelo enigma que cerca a compreensão do olhar humano na civilização moderna. Por que se olha? Para que se olha? Razão e finalidade do olhar lançado ao outro não se dão à primeira vista, porque se trata de um diálogo-em-literatura (isto é, expresso por palavra) que, paradoxalmente, fica aquém ou além das palavras. A ficção existe para falar da incomunicabilidade de experiências: a experiência do narrador e a do personagem. A incomunicabilidade, no entanto, se recobre pelo tecido de uma relação, relação esta que se define pelo olhar. Uma ponte, feita de palavras, envolve a experiência muda do olhar e torna possível a narrativa.

No conto "Azeitona e vinho", insiste o narrador: "Pablito não sabe que o estou observando, naquele grupo". E ainda: "Não se lembrará de mim, mas talvez não tenha esquecido as coisas de que lhe falei". Permanece a fixidez imperturbável de um olhar que observa alguém, aquém ou além das palavras, no presente da bodega (de uma mesa observa-se a outra), ou no passado revivido pela lembrança (ainda o vejo, mas no passado).

Não é importante a retribuição do olhar. Trata-se de um investimento feito pelo narrador em que ele não cobra lucro, apenas participação, pois o lucro está no próprio prazer que tem de olhar. Dou uma força, diz o narrador. Senti firmeza, retruca o personagem. Ambos mudos. Não há mais o jogo do "bom conselho" entre experientes, mas o da admiração do mais velho. A narrativa pode expressar uma "sabedoria", mas esta não advém do narrador: é depreendida da ação daquele que é observado e não consegue mais narrar - o jovem. A sabedoria apresenta-se, pois, de modo invertido. Há uma desvalorização da ação em si.

Eis nas suas linhas gerais a graça e o sortilégio da experiência do narrador que olha. O perigo no conto de EC não são as mordaças, mas as vendas. Como se o narrador exigisse: Deixem-me olhar para que você, leitor, também possa ver.

O olhar tematizado pelo narrador de "Azeitona e vinho" é um olhar de generosidade, de simpatia, amoroso até, que recobre o jovem Pablito, sem que o jovem se dê conta da dádiva que lhe está sendo oferecida. Mas, atenção!, o mais experiente não tem conselho a dar, e é por isso que não pode visar lucro com o investimento do olhar. Não deve cobrar, por assim dizer. Eis a razão para a briga entre Hemingway (observador e também homem da palavra) e o toureiro Dominguín (observado e homem de ação):

Nessa época Dominguín o chamava de Pai. Papá. Agora dizia que o velho andava zureta. Pai pirado. Poucos dias depois pude mostrar a Clara uma entrevista em que Dominguín contava: Eu era seu hóspede em Cuba. Vieram uns jornalistas à casa dele, para entrevistar-me. [...] Quando um jornalista quis saber se era verdade que eu procurava os conselhos [o grifo é nosso] do dono da casa, para melhorar a minha arte, compreendi bem como pudera ter surgido o despropositado boato, só de ver o rosto dele. Pensei em dar uma resposta diplomática, mas mudei de idéia e falei com toda a franqueza: Não creio, no ponto a que cheguei, precisar dos conselhos de ninguém em questão de tourada.

O "filho" não pode olhar submisso o rosto do "pai", sob pena de destruir o mistério do investimento afetivo dado pelo olhar paterno. De nada adianta a diplomacia se o pacto for quebrado - Dominguín é curto e grosso. O filho não pode reconhecer o pai enquanto fonte de conselho, ou reconhecer a dívida que proporciona o lucro do mais velho, pois é ele próprio a fonte da sabedoria. Pai. Papá. Velho zureta. Pai pirado. Eis as metamorfoses do velho que quer usurpar o valor de uma ação que não é experimentada por ele, mas apenas observada. Subtrai-se pelo olhar - eis o único conselho que lhe pode dar o observado, se houver lugar para o diálogo.
A vivência do mais experiente é de pouca valia. Primeira constatação: a ação pós-moderna é jovem, inexperiente, exclusiva e privada da palavra - por isso tudo é que não pode ser dada como sendo do narrador. Este observa uma ação que é, ao mesmo tempo, incomodamente auto-suficiente. O jovem pode acertar errando, ou errar acertando. De nada vale o paternalismo responsável no direcionamento da conduta. A não ser que o paternalismo se prive de palavras de conselho e seja um longo deslizar silencioso e amoroso pelas alamedas do olhar.

Caso o olhar queira ser reconhecido como conselho, surge a incomunicabilidade entre o mais experiente e o menos. A palavra já não tem sentido porque já não existe mais o olhar que ela recobre. Desaparece a necessidade da narrativa. Existe, pesado, o silêncio. Para evitá-lo, o mais experiente deve subtrair-se para fazer valer, fazer brilhar o menos experiente. Por a experiência do mais experiente ser de menor valia nos tempos pós-modernos é que ele se subtrai. Por isso tudo também é que se torna praticamente impossível hoje, numa narrativa, o cotejo de experiências adultas e maduras sob a forma mútua de conselhos. Cotejo que seria semelhante ao encontrado na narrativa clássica e que conduziria a uma sabedoria prática de vida.
Em virtude da incomunicabilidade da experiência entre gerações diferentes, percebe-se como se tornou impossível dar continuidade linear ao processo de aprimoramento do homem e da sociedade. Por isso, aconselhar - ao contrário do que pensava Benjamin - não pode ser mais "fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada". A história não é mais vislumbrada como tecendo uma continuidade entre a vivência do mais experiente e a do menos, visto que o paternalismo é excluído como processo conectivo entre gerações. As narrativas hoje são, por definição, quebradas. Sempre a recomeçar. Essa é a lição que se depreende de todas as grandes rebeliões de menos experientes que abalaram a década de 60, a começar pelo Free speech movement, em Berkeley, e indo até os événements de mai, em Paris.
No entanto, o elo de simpatia cúmplice entre o mais experiente e o menos (sustentado pelo olhar que é recoberto pela narrativa) assegura o clima das ações intercambiáveis. As ações do homem não são diferentes em si de uma geração para outra, muda-se o modo de encará-las, de olhá-las. O que está em jogo não é o surgimento de um novo tipo de ação, inteiramente original, mas a maneira diferente de encarar. Pode-se encará-la com a sabedoria da experiência, ou com a sabedoria da ingenuidade. Não há, pois, uma sabedoria vencedora, privilegiada, embora haja uma que seja imperiosa. Há um conflito de sabedorias na arena da vida, como há um conflito entre narrador e personagem na arena da narrativa. Como pensa e nos diz Octavio Paz: "La confianza en los poderes de la espontaneidad está en proporción inversa a la repugnancia frente a las construcciones sistemáticas. El descrédito del futuro y de sus paraísos geométricos en general". Daí pode concluir: "En la sociedad postindustrial las luchas sociales no son el resultado de la oposición entre trabajo y capital, sino que son conflictos de orden cultural, religioso e psíquico".

O velho na bodega já tinha passado por tudo pelo que passa o jovem El Mudo, mas o que conta é o mesmo diferente pelo que o observador passa, que o observado experimenta na sua juventude de agora. A ação na juventude de ontem do observador e a ação na juventude de hoje do observado são a mesma. Mas o modo de encará-las e afirmá-las é diferente. De que valem as glórias épicas da narrativa de um velho diante do ardor lírico da experiência do mais jovem? - eis o problema pós-moderno.

Aqui se impõe uma distinção importante entre o narrador pós-moderno e o seu contemporâneo (em termos de Brasil), o narrador memoralista, visto que o texto de memórias tornou-se importantíssimo com o retorno dos exilados políticos. Referimo-nos, é claro, à literatura inaugurada por Fernando Gabeira com o livro O que é isso, companheiro?, onde o processo de envolvimento do mais experiente pelo menos se apresenta de forma oposta ao da narrativa pós-moderna. Na narrativa memorialista o mais experiente adota uma postura vencedora.
Na narrativa memorialista, o narrador mais experiente fala de si mesmo enquanto personagem menos experiente, extraindo da defasagem temporal e mesmo sentimental (no sentido que lhe empresta Flaubert em "educação sentimental") a possibilidade de um bom conselho em cima dos equívocos cometidos por ele mesmo quando jovem. Essa narrativa trata de um processo de "amadurecimento" que se dá de forma retilínea. Já o narrador da ficção pós-moderna não quer enxergar a si ontem, mas quer observar o seu ontem no hoje de um jovem. Ele delega a um outro, jovem hoje como ele foi jovem ontem, a responsabilidade da ação que ele observa. A experiência ingênua e espontânea de ontem do narrador continua a falar pela vivência semelhante mas diferente do jovem que ele observa, e não através de um amadurecimento sábio de hoje.

Por isso, a narrativa memorialista é necessariamente histórica (e nesse sentido é mais próxima das grandes conquistas da prosa modernista), isto é, é uma visão do passado no presente, procurando camuflar o processo de descontinuidade geracional com uma continuidade palavrosa e racional de homem mais experiente. A ficção pós-moderna, passando pela experiência do narrador que se vê - e não se vê - a si ontem no jovem de hoje, é primado do "agora" (Octavio Paz).

Retomemos Benjamin. Diz ele: "Com a guerra mundial tornou-se manifesto um processo que continua até hoje. No final da guerra, observou-se que os combatentes voltavam mudos [o grifo é nosso] do campo de batalha, não mais ricos e sim mais pobres de experiência comunicável". Por um desses finos jogos de ironia, quem fala no conto, o velho, não narra a própria vida para o leitor. Importa apenas a juventude corajosa do jovem que ele admira e que é chamado sintomaticamente de El Mudo e que "mudo" fica durante todo o conto.

Dar palavra ao olhar lançado ao outro (ao menos experiente, a El Mudo) para que se possa narrar o que a palavra não diz. Há um ar de superioridade ferida, de narcisismo esquartejado no narrador pós-moderno, impávido por ser ainda portador de palavra num mundo onde ela pouco conta, anacrônico por saber que o que a sua palavra pode narrar como percurso de vida pouca utilidade tem. Por isso é que olhar e palavra se voltam para os que dela são privados.
A literatura pós-moderna existe para falar da pobreza da experiência, dissemos, mas também da pobreza da palavra escrita enquanto processo de comunicação. Trata, portanto, de um diálogo de surdos e mudos, já que o que realmente vale na relação a dois estabelecida pelo olhar é uma corrente de energia, vital (grifemos: vital), silenciosa, prazerosa e secreta.

A resposta mais radical à pergunta "Por que se olha?" nos foi dada por Nathalie Sarraute: olha-se do mesmo modo como as plantas se voltam para o sol num movimento de tropismo. Luz e calor - eis as formas de energia que o sol transmite às plantas, empinando-as, tonificando-as.

Transposto para a experiência humana de que nos ocupamos, o tropismo seria uma espécie de subconversa ("sous-conversation", diz Sarraute) em que, contraditoriamente, o sol é o mais jovem, e a planta, o mais experiente. A velha planta se sente atraída pelo jovem sol sem que se evidenciem os motivos da subconversa. Não se estranha, pois, que Edilberto tenha criado a sua ficção em cima dessa falta de evidência da razão e da finalidade do olhar. O conto diz que o narrador olha. O conto diz que o personagem é olhado. Mas ficam como enigma a razão e a finalidade desse olhar. Em termos apocalípticos, olha-se para dar razão e finalidade à vida.

De maneira sutil, Benjamin torna paralelo o embelezamento da narrativa clássica com outro embelezamento: o do homem no leito de morte. O mesmo movimento que descreve o desaparecimento gradual da narrativa clássica serve também para descrever a exclusão da morte do mundo dos vivos hoje. A partir do século XIX, informa-nos Benjamin, evita-se o espetáculo da morte. A exemplaridade que dá autoridade à narrativa clássica, traduzida pela sabedoria do conselho, encontra a sua imagem ideal no espetáculo da morte humana. "Ora, é no momento da morte que o saber e a sabedoria do homem e sobretudo sua existência vivida - e é dessa substância que são feitas as histórias - assumem pela primeira vez uma forma transmissível." A morte projeta um halo de autoridade - "a autoridade que mesmo um pobre-diabo possui ao morrer" - que está na origem da narrativa clássica.

Morte e narrativa clássica cruzam caminho, abrindo espaço para uma concepção do devir humano em que a experiência da vida vivida é fechada em sua totalidade, e é por isso que é exemplar. À nova geração, aos ainda vivos, o exemplo global e imóvel da velha geração. Ao jovem, o modelo e a possibilidade da cópia morta. Um furioso iconoclasta oporia ao espetáculo da morte um grito lancinante da vida vivida no momento de viver. A exemplaridade do que é incompleto. O toureiro na arena sendo atingido pelo touro.

Há - não tenhamos dúvida - espetáculo e espetáculo, continua o jovem iconoclasta. Há um olhar camuflado na escrita sobre o narrador de Benjamin que merece ser revelado e que se assemelha ao olhar que estamos descrevendo, só que os movimentos dos olhares são inversos. O olhar no raciocínio de Benjamin caminha para o leito da morte, o luto, o sofrimento, a lágrima, e assim por diante, com todas as variantes do ascetismo socrático.

O olhar pós-moderno (em nada camuflado, apenas enigmático) olha nos olhos do sol. Volta-se para a luz, o prazer, a alegria, o riso, e assim por diante, com todas as variantes do hedonismo dionisíaco. O espetáculo da vida hoje se contrapõe ao espetáculo da morte ontem. Olha-se um corpo em vida, energia e potencial de uma experiência impossível de ser fechada na sua totalidade mortal, porque ela se abre no agora em mil possibilidades. Todos os caminhos o caminho. O corpo que olha prazeroso (já dissemos), olha prazeroso um outro corpo prazeroso (acrescentemos) em ação.

"Viver é perigoso", já disse Guimarães Rosa. Há espetáculo e espetáculo, disse o iconoclasta. No leito de morte, exuma-se também o perigo de viver. Até mesmo o perigo de morrer, porque ele já é. Reina única a imobilidade tranqüila do homem no leito de morte, reino das "belles images", para retomar a expressão de Simone de Beauvoir diante das gravuras fúnebres dos livros de história. Ao contrário, no campo da vida exposta no momento de viver o que conta para o olhar é o movimento. Movimento de corpos que se deslocam com sensualidade e imaginação, inventando ações silenciosas dentro do precário. Inventando o agora.

Num conto pós-moderno, morte e amor se encontram no meio da ponte da vida. A única pergunta que faz o narrador de "Ocorrência na ponte", diante da imagem da morte, "uma dama feia e triste, da cor da lama", a única pergunta que lhe faz: "Era possível reinventar a vida para o rio ou para ela?" A resposta é também única: pelo desejo se reinventa a vida na morte. E naquele rosto de mulher, depois da cópula, depois da morte, exprimia-se, diz-nos o narrador, "qualquer coisa como uma absurda esperança".

O olhar humano pós-moderno é desejo e palavra que caminham pela imobilidade, vontade que admira e se retrai inútil, atração por um corpo que, no entanto, se sente alheio à atração, energia própria que se alimenta vicariamente de fonte alheia. Ele é o resultado crítico da maioria das nossas horas de vida cotidiana.

Os tempos pós-modernos são duros e exigentes. Querem a ação enquanto energia (daí o privilégio do jovem enquanto personagem, e do esporte enquanto tema). Esgotada esta, passa o atuante a ser espectador do outro que, semelhante a ele, ocupa o lugar que foi o seu. "Azeitona e vinho". É essa última condição de prazer vicário, ao mesmo tempo pessoal e passível de generalização, que alimenta a vida cotidiana atual e que EC dramatiza através do narrador que olha. Ao dramatizá-lo na forma em que o faz, revela o que nele pode ser experiência autêntica: a passividade prazerosa e o imobilismo crítico. São essas as posturas fundamentais do homem contemporâneo, ainda e sempre mero espectador ou de ações vividas ou de ações ensaiadas e representadas. Pelo olhar, homem atual e narrador oscilam entre o prazer e a crítica, guardando sempre a postura de quem, mesmo tendo se subtraído à ação, pensa e sente, emociona-se com o que nele resta de corpo e/ou cabeça.

O espetáculo torna a ação representação. Dessa forma, ele retira do campo semântico de "ação" o que existe de experiência, de vivência, para emprestar-lhe o significado exclusivo de imagem, concedendo a essa ação liberta da experiência condição exemplar de um agora tonificante, embora desprovido de palavra. Luz, calor, movimento - transmissão em massa. A experiência do ver. Do observar. Se falta à ação representada o respaldo da experiência, esta, por sua vez, passa ser vinculada ao olhar. A experiência do olhar. O narrador que olha é a contradição e a redenção da palavra na época da imagem. Ele olha para que o seu olhar se recubra de palavra, constituindo uma narrativa.

O espetáculo torna a ação representação. Representação nas suas variantes lúdicas, como futebol, teatro, dança, música popular, etc.; e também nas suas variantes técnicas, como cinema, televisão, palavra impressa, etc. Os personagens observados, até então chamados de atuantes, passam a ser atores do grande drama da representação humana, exprimindo-se através de ações ensaiadas, produto de uma arte, a arte de representar. Para falar das várias facetas dessa arte é que o narrador pós-moderno - ele mesmo detendo a arte da palavra escrita - existe. Ele narra ações ensaiadas que existem no lugar (o palco) e no tempo (o da juventude) em que lhes é permitido existir.

O narrador típico de EC, pelas razões que vimos expondo, vai encontrar na "sociedade do espetáculo" (para usar o conceito de Guy Debord) campo fértil para as suas investidas críticas. Por ela é investido e contra ela se investe. No conto "A lugar comum", transcrição ipsis litteris do script de um programa de televisão, em que é entrevistado um jovem marginal, a realidade concreta do narrador é grau zero. Subtraiu-se totalmente. O narrador é todos e qualquer um diante de um aparelho de televisão. Essa também - repitamos - é a condição do leitor, pois qualquer texto é para todos e qualquer um.

Em "A lugar algum", o narrador é apenas aquele que reproduz. As coisas se passam como se o narrador estivesse apertando o botão do canal de televisão para o leitor. Eu estou olhando, olhe você também para este programa, e não outro. Vale a pena. Vale a pena porque assistimos aos últimos resquícios de uma imagem que ainda não é ensaiada, onde a ação (o crime) é respaldada pela experiência. A experiência de um jovem marginal na sociedade do espetáculo.
Para testemunhar do olhar e da sua experiência é que ainda sobrevive a palavra escrita na sociedade pós-industrial.

1986